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A pele como tecido frágil que endurece para se adaptar ao meio. O elefante como animal cuja força imensa é desconhecida por ele mesmo se capturado ainda jovem, antes de aprender com outros de sua espécie do que é capaz. Metáforas entre o humano e o animal, com as quais o dramaturgo baiano Daniel Farias, radicado em São Paulo, tece o confronto interno do(s) personagem(s) de “Paquiderme” entre a passividade e a agressão: o medo que pode ser prudência ou covardia e a coragem que pode ser valentia ou temeridade.
É notável como as metáforas – sobretudo com animais – têm servido à criação dos mais variados tipos de texto na dramaturgia contemporânea. “Amores Surdos”, de Grace Passô, seria a obra mais emblemática disso. Na novíssima geração, o crocodilo de Diogo Liberano (em performance no Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto) e o leão de Vinicius Souza (“Bestiário”) reiteram a potência de indagar-se o humano por intermédio do animal irracional.
O texto gestado por Farias no Núcleo de Dramaturgia do Sesi - British Council, em São Paulo, e apresentado na Mostra de Dramaturgia do Sesi-Teatro Guaíra, em Curitiba, investe em procedimentos recorrentes entre jovens autores de dramaturgia contemporânea. É o caso do tempo não-linear e do sujeito cindido entre um eu e um outro – o que desloca a atenção das relações intersubjetivas (típicas do drama tradicional) para as relações intrassubjetivas, por assim dizer. Problematizar essa instância em crise do eu parece de fato uma urgência numa sociedade narcísica e autorreferencial, mas pouco afeita a autoinvestigações aprofundadas.
O duplo, em “Paquiderme”, faz emergir embates entre forças opostas da psique, e sugere um confronto entre tempos vividos e expectativas de autorrealização. Tudo escrito com a riqueza poética das estruturas linguísticas prenhes de imagens, associações, recorrências e ecos intensificadores da experiência estética. Uma elaboração complexa e sensível de camadas, que não recusa o sentido unívoco obliterando sentidos; em vez disso, alimenta (e sustenta) múltiplas leituras. Isto sim não é tão recorrente na dramaturgia contemporânea praticada por jovens autores.
Cabe lembrar-se da crítica de Heiner Müller a que se façam comunicados por meio de textos, se “a formulação de um fato já é a superação do fato”. Em “Paquiderme”, não há comunicação que se complete nem superação. Estamos no olho do enigma com os personagens, igualmente atravessados pelos estilhaços de memória e de compreensão, igualmente embaçados na visão do quê, do quando, do onde. “O texto é um animal – algo estranho, não-humano”, já dizia Müller. E o de Daniel Farias parece pedir justamente que seja encenado de modo a se tornar, como clamava o dramaturgo alemão, um “coiote para o espectador”: estranho e indomável.
Na leitura cênica dirigida por Johana Albuquerque, sobressai a direção de atores cuidadosa no trabalho com intensidades e intenções. Escora para as atuações dos experientes Daniel Alvim e Luciano Gatti, hábeis em envolver a atenção do público e conduzi-lo a ouvir cada murmúrio.
As escolhas de movimentos, gestos e objetos simplificados e não meramente ilustrativos – o chute no chão que pode ser um passe de futebol ou a pisada de um elefante, por exemplo – gera um pacto de convenção com o público que recusa as precisões e determinações do realismo em troca da criação de imagens cênicas muito mais abertas e sugestivas, tanto quanto são as textuais. Desenha-se assim um quadro lacunar estimulante à imaginação do espectador.
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