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O mundo fantasmagórico evocado pela dramaturga Ana Johann e pelo encenador Thadeu Peronne no espetáculo “Eu Grito Que...” recria no palco a escuridão noturna de um cemitério: local tomado como limbo entre o mundo dos vivos e o dos mortos. Não só onde mães e viúvas pranteiam sobre tumbas nem só encontro de almas penadas. O singular da obra é fazer desse um espaço para dar voz ao recém-morto e ao susto de sua condição.
Ao apreender os instantes finais de uma consciência ainda moldada por padrões humanos, mas prestes a se liquefazer entre as carnes putrescentes, a dramaturgia enfrenta o horror ao cadáver – próprio ao homem da crença (aquele que nega a podridão com imagens sublimes) e ao homem da tautologia (o que se satisfaz em não ver além da materialidade), como notou o filósofo francês Didi-Huberman.
Para isso, recorre a um contraponto infantil, cuja inocência exacerba o contraste com a crueza (ou crueldade) da morte. Uma criança surge como personagem, assim como duas mulheres e mãe, ao lado de formas inumanas (o grito, o saber) coerentes com a passagem do ser ao não ser proposta na situação teatral.
A direção opera uma inversão: corporifica o grito na figura de uma atriz de baixa estatura presa ao elástico, enquanto desmaterializa a criança de quem só se ouve, justamente, o grito. Trata-se de uma estratégia ambígua de vincular o que poderia ser lido como partes divididas de um mesmo ser, mas sem fechar os sentidos dessa leitura.
A mistura de referências humanas às inumanas configura um espaço de estranheza e de obscuridade. Por não saber as leis que o regem, o espectador é surpreendido pelas curvas que estados emocionais inesperados traçam na dramaturgia, bordejando pelo cômico e pelo trágico. Assim funcionam, por exemplo, a trajetória de desapego dos bens materiais até a desintegração de uma das mulheres; a leviandade de outra personagem que desata em violência; e as constatações da morta recente.
Ana Johann dosa as sugestões ofertadas nas falas, de modo a mais intrigar o espectador, que vai construindo paulatinamente sua compreensão do que vê. Na direção, Thadeu Peronne trabalha com os atores distintas modulações vocais, que distinguem e particularizam os seres em cena, dando vida ao texto nas falas. E elabora imagens poderosas de figuras humanas esticadas.
A ausência de um desenho de luz determinado impede que tais imagens ganhem mais potência. Porém, ao entregar uma lanterna a alguns espectadores na entrada do teatro, sem maiores orientações sobre seu uso, o diretor abre possibilidades para uma experiência distinta de iluminação e de expectação: a luz sai do âmbito estético para se tornar um elemento dramatúrgico, mais especificamente, de uma dramaturgia do espectador.
Esta proposta alarga a ideia do teórico argentino J. Dubatti de que cabe ao espectador a criação receptiva e, ao artista, a criação produtiva do espetáculo, permitindo a parte do público momentos de criação produtiva, sim, na decisão de quando, como e o que iluminar da cena. Ação que reforça a experiência sensorial associada à noite no cemitério: de escuridão e de desbravamento do oculto.
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